sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O Abismo e o Encontro - Carona numa crônica de Martha Medeiros

"Era uma vez um pai e uma filha separados por um abismo. Não conseguiam saltar um para o lado do outro, ficavam apenas imaginando como seria bom se pudessem se abraçar, confidenciar emoções ou dançar juntos. Passaram a vida com este corte no meio, impedidos de se unirem. Até que um dia resolveram acabar com esta distância.

Saltaram ambos, ao mesmo tempo, para dentro do abismo, a fim de se encontrarem lá embaixo, naquele buraco escuro onde temiam defrontar-se com monstros e lagartos.

Mas, ao chegarem lá no fundo, não foi monstro nem lagarto que encontraram, e sim lembranças quase esquecidas, palavras engasgadas, frases que nunca chegaram a ser ditas."

Este é o livro infanto-juvenil chamado "O Pai da Filha e a Filha do Pai". O livro é apresentado como "uma história de amor eterno com abismo no meio e encontro no fim". Começou bonito.

É esta a história contada por Adriana Jorgge com ilustrações de Kiko Farkas, mas que poderia ser contada por tantas outras filhas e também filhos que vivem separados de seus pais por abismos diversos: ou o pai separou da mãe muito cedo e nunca mais apareceu, ou o pai vive pertinho mas não permite intimidade, ou pais e filhos têm uma visão muito diferente da vida e não se entendem, ou o pai tem medo de demonstrar seus sentimentos, ou são os filhos que têm. Cada um sabe a profundidade do corte que a relação sofreu.

No livro, o abismo é gigantesco. Porém, todo abismo começa como um pequeno fosso, ele só se expande porque a gente deixa que isso aconteça, e aí, com o passar do tempo, vira algo aparentemente intransponível. Mas só aparentemente. Havendo intenção de entendimento e um pouco de coragem de ambas as partes, descobre-se que o que afasta mesmo é o silêncio, aquilo que as pessoas deixam para verbalizar apenas no leito de morte: as tais palavras engasgadas e frases que nunca foram ditas.

Há pais que mesmo ausentes em presença física, preservam a sintonia, a cumplicidade, bastando um telefonema para se fazerem presentes. Porém, há abismos por aí, a gente sabe. O livro é uma espécie de convite para pais e filhos saltarem o abismo juntos em busca de aproximação. É um livro infantil, mas, convenhamos, toda separação entre pessoas que se amam é infantil.

E termino esta crônica da mesma maneira que o livro delicadamente termina: Fim (ou começo)". Martha Medeiros

Intervenção minha na crônica da venerável Martha Medeiros que copiei fielmente até aqui com algumas pequenas alterações para adequar no post: "...o que afasta mesmo é o silêncio, aquilo que as pessoas deixam para verbalizar apenas no leito de morte: as tais palavras engasgadas e frases que nunca foram ditas". Eu digo que algumas palavras e frases são ditas e não têm volta, já cumpriram o seu papel de carregar significados e interpretações. Algumas são ditas com a calculada intenção de ferir, outras são puro impulso. Muitas são inesquecíveis. Outras confortantes.

Aquilo que nunca foi dito vai sempre doer mais e pulsar mais exatamente por ter sido calado, sufocado e reprimido para todo o incompreensível sempre, sem chance de revelação. E o que já foi dito, embora determine muito do que se pensa e sente adiante, já se foi, já causou os efeitos que poderia. Palavras. Tantas. Abismos. Encontros. E desencontros.

Um comentário:

  1. Vide bula


    Palavra é ritmo e dança
    Brinquedo de desmontar
    Palavra é de som e ar
    Aguda ponta de lança

    Contida, exaltada. chula
    Chicote ou doce canção
    Carícia ou demolição
    Na dúvida vide bula

    É mapa, é lei, estrutura
    É luz numa mina escura
    Ou pura contradição

    Mentira mais verdadeira
    Verdade mais traiçoeira
    Não diz sim e sim diz não
    (obrigado por essa tua fluida e profunda leveza. Ricardo Dias)

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