sábado, 19 de dezembro de 2009

O Veneno dos Borgia

Decidi falar de Lucrecia Borgia, uma figura feminina que muito me interessou, corroborando a minha tese de que os muito bonzinhos não dão uma boa história para contar.

Há a fantasia de que ela foi uma mulher poderosa e má, capaz de manipular e seduzir os homens, mantendo-os aos seus pés. Ficou conhecida como uma das femme fatales mais famosas da história, pelo hábito de envenenar os homens dos quais queria se livrar usando um pó que, supostamente, guardava num anel. Embora totalmente sem evidências, essa fofoca histórica alimenta o imaginário coletivo.

Teve três casamentos e uma vida marcada por episódios de intriga, assassinatos, luxúria, devassidão e incesto. Sem graça é que não foi, né?

Nasceu em 1480, em Subiaco, na Italia, sendo filha ilegítima do ambicioso Cardeal Rodrigo Bórgia, aquele que se tornaria o Papa Alexandre VI (o mesmo que assinou o Tratado de Tordesilhas), com sua amante Vanozza dei Cattanei, numa época em que ser membro da Igreja não era uma questão religiosa, mas sim uma forma de poder e dominação. Com esta mulher, o Cardeal também teve César (1475), Giovanni (1477) e Geofredo (1481-1483.

Lucrécia foi uma peça importante para os interesses do pai e do irmão, o déspota e sanguinário César, que serviu de inspiração para Nicolau Maquiavel, em "O Príncipe". Daí a expressão maquiavélico. Todos os seus 3 casamentos beneficiaram sua família, coisa mais que comum na época: o das famílias unirem seus reinos para ganharem alguns benefícios.

As intrigas na família Borgia começaram cedo, com a disputa dos irmãos mais velhos, Cesar e Giovanni, acirrados pelos ciúmes que César Borgia sentia diante da preferência do pai e da irmã pelo irmão Giovanni. O que talvez não seja difícil de entender. Cesar Borgia não parecia ser um sujeito agradável.

Aos nove anos, Lucrécia foi para a casa de Adriana de Milá, nobre prima do Cardeal Rodrigo Borgia, para receber uma educação erudita em Roma, condizente com sua condição. Todos os irmãos foram separados. Giovanni foi para a Espanha e César foi obrigado pelo pai a entrar para a vida religiosa, mesmo sem a menor vocação para ela...

Adriana de Milá, era a mãe de Orsino Orsini, garoto com a mesma idade de Lucrécia e recém-casado com Giulia Farnese, de 14 anos, considerada uma beldade na época, e que, apesar de casada, tornou-se amante do Cardeal Rodrigo Bórgia, pai de Lucrécia, com a total conivência da família do seu marido. Giulia chegou a ter uma filha chamada Laura com o cardeal. Tudo permitido e abençoado porque afinal, ele era um dos homens mais poderosos da Itália e um Papa em potencial.

Giulia e Lucrécia ficaram amigas. Aos 13 anos, Lucrecia, considerada a mulher mais bonita e sedutora de toda a Roma renascentista, casava-se com Giovanni Sforza, Senhor de Pesaro, de acordo com os planos e vontades da sua família.

O casamento não foi "literalmente" consumado, pois a noiva foi considerada jovem demais, e nos 2 anos seguintes, o casal passou totalmente separado. Ele, em Pesaro e ela, em Roma, levando a fama de promiscua por participar de verdadeiros bacanais e orgias no Vaticano.

Neste meio tempo, o pai de Lucrecia tornou-se o que se esperava: o Papa Alexandre VI, e expulsou Giulia Farnese, sua amante favorita, do Vaticano, logo depois. Sem a amiga, Lucrecia se aproximou da nova esposa do irmão mais novo, Geofredo: Sanchia de Aragão - filha bastarda do rei de Nápoles. Sanchia tinha fama de frequentar os aposentos do cunhado, Giovanni Borgia, e talvez, também os de César. Sei não, esse Giovanni Borgia devia ter borogodó... Todo mundo gostava dele.

O primeiro casamento de Lucrécia durou pouco tempo, pois o Senhor de Pesaro, logo se tornou um possível aliado dos inimigos dos Bórgia, e Alexandre VI, como bom carcamano que era, lhe propôs a dissolução do casamento. Como Giovanni Sforza recusou-se, o Papa simplesmente decidiu eliminá-lo, comunicando sua decisão à filha Lucrécia, que dizem, mandou o camareiro avisar Sforza, para que ele pudesse fugir.

Giovanni Sforza conseguiu de fato fugir, e Alexandre VI se encarregou de espalhar que ele seria impotente e por isso o casamento não teria se consumado, justificando o pedido de anulação, mesmo sabendo que a primeira esposa do cara tinha morrido de parto.

As calúnias levaram Sforza a difamar toda a família Bórgia, revelando que Lucrecia tinha relações incestuosas com o pai e os irmãos. Essas acusações, embora nunca comprovadas, ultrapassaram séculos carregadas de tragedias, sexo, intrigas, traições, vinganças...

Para completar, em 1497, o irmão mais chegado de Lucrecia, Giovanni, apareceu degolado no Rio Tibre. Todas as evidências apontaram para César Bórgia como sendo o assassino. Além de ter sido visto próximo ao local do crime, ele era a pessoa que mais tinha motivos para assassinar o próprio irmão: a inveja por Giovanni ser o Duque de Gandia, já que sendo ele o mais velho, teoricamente teria esse direito; a preferência do pai pelo irmão morto, além do ciúme doentio que sentia por sua irmã Lucrécia ser mais próxima de Giovanni do que dele. Giovanni era o queridinho, e ele, ao que parece, sempre foi o sinistro da familia. Ao perceber que o próprio filho seria o responsável pelo assassinato, o Papa mandou encerrar as investigações, antes que o escândalo tomasse uma proporção ainda maior, o que já não era mais possível. A família Borgia era do balacobaco...

Depois da anulação do primeiro casamento de Lucrécia, supostamente virgem, ela apareceu grávida, tendo uma criança que ficou conhecida por “Infante Romano”, e que supõe-se, tenha sido filho dela com o camareiro do Papa Alexandre VI, Perotto, fato que nunca foi comprovado. Ainda hoje não se sabe quem realmente são os verdadeiros pais do “Infante Romano”, já que Alexandre VI promulgou duas bulas contraditórias: a 1ª declarando que a criança seria filho de César Bórgia com uma mulher não casada, e a 2ª, declarando-o filho dele mesmo. Estas duas bulas juntas asseguravam, do ponto de vista legal, o futuro da criança e aumentavam as especulações de incesto entre os Borgia. Uma coisa assim tipicamente italiana. Vai pesquisar estes documentos depois. Italiano faz umas bagunças históricas, sim, mas a genialidade compensa...

Alexandre VI escolheu um novo pretendente para Lucrecia: agora era Afonso de Aragão, Duque de Bisceglie, irmão de sua nora, Sancha de Aragão. Esse casamento aumentava os domínios e as pretensões dos Bórgia, deixando César mais perto do trono de Nápoles.

O 2º casamento de Lucrecia com Afonso de Bisceglie, parece que foi feliz, e ela teve então o primeiro filho de quem realmente cuidou: Rodrigo de Bisceglie, em 1499. Logo depois do nascimento da criança, Afonso foi seriamente ferido numa emboscada planejada por Cesar Borgia, mas conseguiu fugir. Tratado apenas pela mulher e pela irmã Sanchia, que preparavam tudo para ele, com medo de envenenamento, ainda assim, enquanto Afonso se recuperava, César Bórgia mandou que invadissem o seu quarto e o estrangulassem, afastando um pretendente legítimo ao trono de Nápoles, que ele, César, tanto desejava. Isso foi em agosto de 1500 e dizem que o próprio Cesar acompanhou a execução do crime. "O Principe" era meio psicopata, há de se convir...

Abalada com a morte trágica do marido, Lucrecia passou um tempo no convento de São Domini. O pai, Alexandre VI, esforçando-se em recuperar a afeição da filha, e de mostrar ao futuro marido que ele já tinha escolhido para ela, que Lucrecia seria capaz de governar se preciso fosse, a nomeou regente de Spoleto e Foligno - cidades ligadas à Santa Sé - entregando-lhe a direção dos negócios internos da Igreja.

Lucrecia entrou para a história como sendo a primeira e única Papisa que existiu, ainda que por uma única semana, quando em 1501, representou o pai, ficando com a administração dos Estados Pontificais, papel que desempenhou muito bem, assim como mais tarde, na ausência do 3º marido, governaria Ferrara.

A atitude escandalosamente inédita de Alexandre VI chocou os cardeais da época, o que alimentou ainda mais as intrigas e especulações sobre as supostas relações incestuosas entre pai e filha.

Last but not least, o 3º casamento de Lucrecia foi com Afonso D’este, herdeiro do trono de Ferrara, que obviamente, hesitou em se casar com ela, pois ele era primo-irmão do 2º marido de Lucrecia, o que foi estrangulado depois de uma emboscada, e também por todos os escândalos que envolviam sua família. A essa altura ela já era considerada uma grande roubada...

Com a ajuda de alguns aliados, como o rei da França, Luiz XII, e de alguns relatórios enviados por embaixadores a pedido do próprio Afonso D’este, investigando sobre a conduta de Lucrécia, ele constatou que além de linda, ela era inofensiva, educada e bonita, e ele, já bastante inclinado a aceitar, decidiu casar-se com Lucrecia.
O contrato de casamento foi assinado em Ferrara, em setembro de 1501.

Alexandre VI, sempe ligado ao poder, escolheu este cara, porque estrategicamente, ele seria obviamente útil aos interesses do filho César, e ao mesmo tempo, porque também seria um marido poderoso o suficiente para proteger a filha das ameaças e pretensões de Cesar, o outro filho, que não tinha muita paciência para esperar quando ávido pelo que queria.

O casamento com Afonso D’este durou até a morte precoce de Lucrecia, em 1519, quando ela tinha apenas 39 anos. Foi logo após o parto de uma menina que já nasceu morta. O casal teve 7 filhos, embora três tenham morrido bem pequenos, e parece que Lucrecia foi bem feliz com Afonso D'este, até onde foi possível.

Lucrécia Bórgia ficou famosa por ter sido uma mulher fatal e cruel, envenenadora de maridos e de quem mais estivesse em seu caminho, seduzindo os homens e manipulando-os. Mas há relatos históricos de que quando governou Ferrara na ausência do 3º marido, ela teria sido uma regente justa, proibindo perseguições aos judeus, e aplicando severas penas aos que descumprissem esta ordem. E há registros de que após uma guerra que arruinou Ferrara, chegou a hipotecar as próprias jóias para ajudar na recuperação da cidade, honrando o título de Duquesa de Ferrara.

Teve contato com grandes artistas renascentistas como Ticiano e Venetto, recebeu o humanista Erasmo em sua corte e manteve contato com grandes escritores da época, promovendo círculos literários. Os Borgia sempre mantiveram boas relações com os também poderosos e influentes mecenas florentinos, os Médici.

Vitor Hugo foi o responsável pela difamação popular de Lucrecia Borgia no século XIX, através do romance, transformado em peça depois, "O Rei se Diverte", de 1824.

Realmente os Borgia oferecem material farto para um laboratório humano,mas Victor Hugo imortalizou apenas o lado fatal de Lucrecia.

Acho que há uma distorção machista e uma injustiça histórica quanto à importância feminina de Lucrecia Borgia. Com uma vida intensa e trágica, ela não foi apenas uma mulher sedutora e devassa. Burra é que ela não foi...

Já a série de quadrinhos eróticos de Milo Manara, inspirada na família Borgia, retrata a promiscuidade do Vaticano, o papel da Igreja nas intrigas em torno da cobiça pelo poder e pela riqueza e o lendário incesto abençoado e executado pelas mãos do Santo Padre. Na série, a Lucrecia, de Manara, faz o capeta e muito mais.

Polêmica é o que não falta. Os Borgia. Aaahhh, os Bórgia...

"Eu sei que eu sou bonita e gostosa
E sei que você me olha e me queeer...
E sou uma fera de pele macia, cuidado, garoto!
Eu sou perigosa...
Eu tenho um veneno no doce da boca.
Eu tenho um demônio guardado no peito.
Eu tenho uma faca no brilho dos olhos.
Eu tenho uma louca dentro de mim.
Eu vou fazer você ficar doido, muito doido, dentro de mim".
As Frenéticas.
Perfeito aqui, né?

Um comentário:

  1. Danielle
    Acabo de ver o seriado dos Borgias, que por sinal está muito bem feito.
    Assim, como o livro de Mario Puzo ,Os Borgias.
    Concordo com você, que existam mais pra ca e menos pra lá , mais era tudo farinha do mesmo saco...
    Não resta a menor dúvida que Lucrécia era uma mulher lidissima para época em que viveu, e como viveu , se morreu com apenas 39 anos teve muita história deixada para que os historiadores esmiuçassem, bastante...
    Adorei seu blog , e adoro história sejam elas reais ou exageradas....já leu a vida de Diana de Poitiers, em várias versões???
    Um abrço Ana Luiza

    ResponderExcluir